sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Deus e o Diabo na Terra do Sol (Direção: Glauber Rocha/1964)

Exibição: 19/09/07. Comentários: Josette Monzani e Luiz Roberto Monzani (Prof(a) Imagem e som- UFSCAR e Prof. de Filosofia da UFSCAR- São Carlos)
Sinopse

O cangaceiro Manuel e sua mulher Rosa são obrigados a viajar pelo sertão, após ele ter matado o patrão. Em sua jornada, eles acabam cruzando com um Deus negro, um diabo loiro e um temível homem. Esta é considerada a obra-prima de Glauber Rocha, um dos mais importantes cineastas brasileiros da história.
....................................................................
Josette Monzani é profa. de cinema do Bacharelado em Imagem e Som da UFSCar. Autora de Gênese de Deus e o Diabo na Terra do Sol. São Paulo: Annablume/Fapesp; Salvador: Fundação Gregório de Mattos Guerra / Centro de Estudos Baianos/ UFBa, 2006. contato: jmonzani@uol.com.br


GLAUBER E A CULTURA DO POVO

Glauber Rocha diz, a respeito de Deus e o Diabo, O Dragão da Maldade e Terra em Transe: “todas as cenas de povo é o povo que cria, eu filmo”. E segue: “as manifestações do povo são as mais importantes, e eu filmo essas manifestações, por isso é que os filmes convencem, convencem até os inimigos porque tá lá a verdade (...)” (1).
Para realizar nos vários roteiros o trecho referente ao cangaço, matéria de nosso estudo dentro da obra Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber fez um levantamento da visão popular do cangaço. Recolheu, entre outros documentos importantes, um folheto de cordel, entrevistas e recortes de jornal e cantigas, de onde retirou elementos para compor seus personagens Corisco, Herculano e Antônio das Mortes e o entrecho do cangaço.

1) Da História de Lampeão de Antônio Teodoro dos Santos (2) assinala alguns trechos e utiliza as visões da morte de Lampião, do que aconteceria a seguir com o cangaço e da figura de Corisco. Reproduziremos um longo, porém esclarecedor trecho.

A 28 de julho
Do ano de 38
O tenente João Bezerra
Com seu batalhão afoito
Matou e desbaratou
O cangaceiro no coito.

Todos os lados tomou
Três horas da madrugada;
Tomou todas posições
Estava a hora marcada
De acordar Lampeão
Na sua linda morada.

Fez um cerco bem seguro
Com boa metralhadora;
Nessa hora só livrava-o
A grande mão protetora
Mas oração deste mundo
Não livra dessa tesoura (3).

Quatro horas da manhã,
clareava a luz do dia;
Maria se penteava
À frente da moradia...
Uma fumaça de fogo
Naqueles ares subia! ...

O tenente conhecendo
Que tudo estava seguro
Mandou fogo meia hora
Que o mundo ficou escuro
Mas os cabras respondera
Foi aí duro com duro.

(...)

“Curisco” com grande turma
Correu doido na barranca.

(...)

‘Curisco’ tendo escapado
Com diversos cangaceiros
Foi ele o chefe do grupo
Andando nos tabuleiros
Rumou certo prá Bahia
Foram os dias derradeiros.

Com a morte de Lampeão
Fracassou o banditismo
Os jagunços conheceram
Que se achavam no abismo
Muitos iam se entregar
Com luminoso cinismo (4).

Mas “Curisco” se julgava
Forte que nem Lampeão;
Continuou no império
Comandando o batalhão
Junto a sua companheira
Que amava de coração.

(...)

A polícia do Estado,
No sertão de Mundo Novo,
Botou “Curisco” no cerco
Apertou-se como um ovo;
Pôs termo na existência
De Curisco com seu povo.


Mas ele antes de morrer
Quase assombra esse sertão
Pôs o dedo no gatilho
E o joelho no chão;
Espalhou brasa sem dó
Unido a seu batalhão (5).

(...)

Porém a metralhadora,
Como chuva de terror,
Comeu todos cangaceiros;
Curisco e o seu amor,
Dadá, que, bem baleada,
Levaram prá Salvador.

O povo cantou:
Vadeia, gente,
Até o sol raiá;
Vadeia, gente,
Até o sol raiá.
Mataro Curisco
e baliaro Dadá...” (6).


Já na versão * 1 dos roteiros de Deus e o Diabo (A Ira de Deus - Corisco) Glauber dramatiza a morte de Lampião. Os planos 5 a 12 dão idéia da calma que reinava no acampamento em Angicos, contrastante com a rapidez da armação do assalto surpresa, e da salvação de Corisco:

“5-Lampião dorme na rede de óculos: é lamp é lamp, etc.
6-Soldado aponta o fuzil
7-Outro soldado
8- Outro soldado
9-tenente: fogo
10-Fuzis disparam
11- fuzis disparam
12- fuzis disparam; escurecimento: som: gritos e tiros: letreiros: nordeste 19... a volante do tenente Bezerra massacra em Angicos o bando de Lampião, o mais feroz dos cangaceiros. Poucos escaparam. Entre estes Corisco e sua mulher Dadá. Som: gritos e tiros, gritos e tiros “(7).

Note-se que o “escurecimento” sugerido aqui por Glauber Rocha está indiciado nos versos “Mandou fogo meia hora / Que o mundo ficou escuro” do romance.
Mas é na versão * 2 (A Ira de Deus - Coirana) que o trecho inicial do poema aparecerá realmente representado: é madrugada, os cangaceiros estão despertando, a mulher do chefe (aqui nomeado Jesuíno Brilhante, mas em tudo semelhante ao Lampião da versão * 1) penteia os cabelos, o ataque é súbito, Corisco (aqui nomeado Coirana) foge, escapa para uma elevação e decide continuar na luta, já chefiando o bando. Alguns planos exemplificadores:

“6- Soldados aproximam-se, semi-agachados, tomando posição de tocaia. Os fuzis e os rostos selvagens brilham sob a lua. O tenente vem na frente e suspende a mão em gestos para se fazer silêncio.
7- (...)
8- O sol nasce sobre o acampamento dos cangaceiros Os cabras vão acordando um pouco. Levantam-se
9- (...)
9- Coirana levanta-se e se espreguiça contra o sol.
10- A bela mulher do Capitão penteia a cabeleira
11- O Capitão ainda dorme na rede
12- duas metralhadoras apontam
13- O Tenente baixa a mão
14- Três cabras caem mortos sucessivamente
15- (...)
16- (...)
19- O Capitão, mortalmente ferido, vem caindo
(...)
29- Alquebrados, correndo e diminuindo a carreira, o bando escapado de Coirana chega para uma elevação
(...)
35- Coirana: morreu o Capitão, acabou a choradeira. Vamo fazer a encomenda e meter os tampo na guerra”(8).

Continuando, será somente na versão * 5 que Glauber trabalhará a questão do abandono do cangaço, após a morte de Lampião, por parte de vários cangaceiros:

“213- Corisco: (...) Mas a cabroeira afrouxou, cego Júlio. Fiquei sozinho, só com esses quatro cabras pra enfrentar mil macaco armado de matadeira...”(9).

Interessa-nos marcar aqui que os trechos do poema evidenciados por Glauber Rocha - como os acima trabalhados - constituíram matéria de preocupação para ele em seu processo criativo, que dizer, foram de certa forma selecionados quando da sua leitura, aguardando apenas oportunidade para serem incorporados ao projeto.
Por outro lado, o destaque feito pelo autor no episódio da morte de Corisco salienta o que estabelecerá outras oscilações de Glauber no decorrer das escrituras: quanto ao sentido, já que Corisco é morto por um tenente, inicialmente (vs. * 1 e * 2), ou pelo tenente Antônio das Mortes (a partir da v. * 3); e quanto à forma, já que Glauber parece estar buscando também, desde a v. * 1, a melhor planificação para a seqüência que vai, aos poucos, sendo cada vez mais esquemática. Relacionamos com esta insatisfação o seu comentário: “as versões variam. A minha é válida”(10).

(Aqui disponibilizamos parcialmente o texto Glauber e a Cultura do povo da Prof(a) Josette. Quem quiser ler o texto na íntegra fazer contato por: cinecult-usp@hotmail.com)

Nenhum comentário: