segunda-feira, 21 de julho de 2008

Acidente (Direção: Cao Guimarães, Pablo Lobato/2006)

Exibição marcada para o dia 03/09/08. Comentários: Bianca Coutinho (psicanalista) e Aurélio Pinto Cardoso (Coordenador do Museu de Imagem e Som de Ribeirão Preto)

Sinopse:
Um poema composto por nomes de 20 cidades com até seis mil habitantes ganha forma por meio de sons e imagens produzidos pelo imprevisto do encontro entre a equipe de filmagem e personagens reais. Cada palavra do poema é um nome de cidade e cada cidade, um ponto do percurso. Num movimento de imersão e submersão, o filme desliza por esses lugares através de duas camadas narrativas. Uma formada pela história do poema e outra, pelos eventos ordinários que surgem acidentalmente diante da câmera em cada uma das cidades. Percepção aberta para deixar-se mesclar ao cotidiano de cada lugar e atenta para eleger um acontecimento qualquer, possível de se relacionar com o poema e capaz de revelar o quanto a vida é imprevisível e acidental.
Direção: Cao Guimarães e Pablo Lobato.
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Projeto Curta Antes: O Melhor sorriso de Getúlio.
Direção: Fernando Schimidt


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Acidentalmente
(Por: Sabrina Rocha Stanford Thompson- Psicanalista Clin-a)
Não posso dizer que foi acidentalmente que Acidente* veio parar em minhas mãos.
Primeiro não acredito em acidentes. Acredito em ligações, acredito em desejos.
Não acredito em alguns acidentes da contingência, esses que chamamos acasos.
Só nos acidentes da realidade- E, algumas vezes, os lamento muito-
Uma amiga me disse que tinha Descoberto e barulho de vassouras feitas de folhas. As vassouras não eram de folhas, mas eu também fiz questão de ver assim.
Um presente jamais me foi dado, por duas vezes e por duas pessoas.
E foi Vilas Volantes que me o trouxe: em verbos contra o vento.
Porque eu venho das dunas brancas, de onde eu queria ficar* e elas me presenteiam até hoje.
Só numa cidade d’ éssas uma cachorra gorda e prenha, com peitinhos estufados, tem a paciência de acordar tranquilamente para comer um sabugo de milho seco.
Essa cena foi o extrato que colhi desse sumo visual poético:

"Heliodora
Virgem da Lapa
Espera feliz
Jacinto Olhos d' água
Entre folhas, Ferros, Palma, Caldas
Vazante Passos
Pai Pedro Abre campo
Fervedouro Descoberto,
Tiros, Tombos, Planura
Águas Vermelhas
Dores de Campos"

Parabéns aos diretores: fazia algum tempo que eu não me deparava com uma elaboração tão sutil.

* Acidente é um documentário de Cao Guimarães e Pablo Lobato, que veio no Box do Vilas Volantes: verbo contra o vento. A amiga é a Bianca, que certamente apareceria em uma poesia. Só não sabia que era visual. As dunas brancas é uma música do Ednardo, ele me lembra o Ceará.
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Texto Apresentado na ocasião do Cine Cult-USP por Bianca Coutinho
’’Passamos á poesia.
Passamos á vida.
E a vida, tenho certeza é feita de poesia.
A poesia não é alheia- a poesia como veremos está logo ali, á espreita.
Pode saltar sobre nós a qualquer instante.
Pois as coisas perfeitas na poesia não parecem estranhas, parecem inevitáveis”
(Borges)


Numa geografia imaginária do Brasil, Cao Guimarães e Pablo Lobato, fizeram um recorte belo e comovente do interior de Minas, um retrato rico, com uma sucessão de pungências, emoções fundas e intensas, numa experimentação e exploração de possibilidades inovadoras de linguagem, com imagens que revelam uma sensibilidade aguda que derrama vida luminosa até em objetos inertes: balcão, talha, copos de água que dançam solitários, bola vermelha que baila delicadamente, flores de plástico cheias de vida e verdade, mergulho no infinito do ser.
O filme me chegou de forma acidental, e de repente, como um presente, ele me conduziu suavemente até Descoberto. Em poucos minutos, me tornei qualquer uma daquelas pessoas uma folha voando, um silêncio que diz , uma água caindo, um copo no chão, uma bola vermelha no corredor, uma névoa branca na madrugada, um barulho de charrete, um andarilho de pedras e morros.
Algo adormecido vibrou em mim, e se colocou nas entrelinhas sutis do corpo do filme e no meu, como se todas aquelas histórias, sensações, olhos e passos fossem parte do que eu sou.
E um acidente, de fato aconteceu numa horinha de descuido meu, entre um suspiro e outro, de vida e agonia.
Sabe aquele segredo que os outros nunca vão entender? E nem a gente mesmo sabe explicar? Aquele guardado num tempo que nunca mais volta? Pois é, Cao Guimarães e Pablo Lobato andaram por lá e quase descobriram as palavras mudas que meu olhar carrega.
Cidade por cidade, personagem por personagem, eu fui reconhecendo e me vendo ali nas frestas, nos buracos, nas reetrâncias.
E então, deixo de padecer com o parecer e passo a desconhecer: eu, o outro, aquilo que se dá a ver e começo a tatear as andanças e mineiridades.
No nome de menina Heliodora, a diferença que se faz visível mesmo no escuro, o desamparo e o desejo do amor, a vela que ainda ilumina, mas quase no fim aponta para a transitoriedade da vida e agita a crença cega na materialidade da qual precisamos nos travestir.
A busca do encontro com o acaso e com o inexplorado se dá é mesmo na penumbra, para qualquer um. Além do mero registro daquilo que os olhos são capazes de ver, a câmera se torna filtro ótico, capaz de interferir, mas também de se apagar.
O sagrado e o profano se encontram nos cânticos lamuriosos e nas meninas vestidas de virgem e com olhar brejeiro de Virgem da Lapa. A Vida nos salta quase como uma epopéia barroca e universal, e somos crença e erotismo, tradição e farra do espírito. Somos carnaval, semana santa.
Temos a lenta procissão de santos desnudados, de santidades invertidas em meninos nus, esperanças expostas no seu contrário. Prisioneiros da tradição, da ordem, e até da desordem nos libertamos de vez em quando, naquilo que se faz ouvir nos sussuros das brincadeiras infantis.
Somos todos mineiros ao assistir o filme, nas cores de nossa ausência, de nossa tangência, de nossa alteridade espantosa. Somos a intensidade e profundidade ao limite que entra na procissão da vida para tentar um deciframento. Queremos todos um lugar para quando o fim chegar, todos clamamos por misericórdia, ao olharmos o sofrimento arraigado no rosto marcado pelo tempo da velha senhora que canta enquanto anda.
A vida como romance sensível, cheia de conflitos, insegurança, paixão e doçura tem sua força nas imagens, na plasticidade e no movimento.
Naquilo que se vê, se deposita o potencial imaginário, mas é justamente nisso que se pode ver é que está também o trampolim para a libertação da concretude e o despertar para a entrega poética, onde as coisas deixam de ser duros depositários de nomes e alcançam transparência.
Numa Espera Feliz, se aguarda com uma nostalgia viva sabe-se lá o quê. Mas alguma coisa é esperada :lá nas fotos de futebol, na ginga, no ritmo antigo onde a vida corre lentamente, enquanto corpos e copos em desencontro sublime e vagaroso formam uma alquimia entre ouro e sangue, entre a riqueza e o drama. A tradição acalma e apazigua a existência. A espera feliz acontece num cão preguiçoso que nem precisa se mexer muito para aquilo lhe chega em deleite. Um existir gozozo e misericordioso. Crianças brincam e chegam em algum lugar ou lugar nenhum. O que conta é mesmo a Espera, isso é que dá vida por aquelas bandas.
Em Jacinto,um quadro dos antepassados, um homem embriagado não sei se pela vida ou por uma dor de amor machucado, cristalizado no tempo, marcado nos sulcos de um rosto que canta porque o instante existe, como na poesia.
Em Olhos d’’agua a contemplação de um segredo com olhos marejados ,na porta de um bar, na solidão da madrugada, no desamparo e aconchego mínimo daquilo que traz humanidade.
Em Entre Folhas, aquilo que cai em suavidade, um barulho de uma charrete em passagem, um bar, um contar cotidiano, e a vida, que continua passando devagar. Um homem toma um gole para algum torpor no vive, para amaciar a dureza brutal da existência.
Em Ferros o escorregadio do desejo que não se completa nunca e quando atingido é apenas vislumbre.
Em Palma, fanfarra solitária do homem com a tuba , nas ruas de pedra as bicicletas com o essencial, o banal e o complexo, o enganadoramente simples, a bola na rua, o resto que é brinquedo, um velho que é um andarilho sem lugar de chegada.
Em Caldas, a moça que convida para entrar e perde a chave nos aponta para o inexeqüível do encontro. No corredor deságuam as águas desse amor possível, nem mais, nem menos que se dá numa equação solitária: Uma banheira para cada, um transbordamento que é de cada um, mãos que não se encontram, bola que dança da cor do pudor no corredor, um jardim a ser cultivado e regado para que não morra a última centelha do que ainda e sempre é desejo.
Em Vazante, aquilo que do feminino faz furo no espaço, um cabide e tanta coisa pendurada, o amor torto, tonto, travestido, ladrão, mas com anseios ternos e eláns afetivos. A mulher que mora na saída e assim é reconhecida, alguma coisa que escorre e não é vista- pontes, fios, um delírio de um crepúsculo num olhar para o absurdo.
Em Passos, um homem que cuida dos pés e o outro que é tentação, causação, mas de quem não se sabe nem o nome, aquilo que diz onde quer calar.
Em Pai Pedro, o homem mais velho é manezim- menino.
Em Abre Campo, no silêncio das pedras e da noite, tudo dorme, só a natureza e os cachorros é que vivem e olham.
Em Fervedouro, o calor do corpo pesado da rotina se joga nas águas e o caminhoneiro vira bailarino, em dança lânguida e voluptuosa junto das profundezas.
Em Descoberto, a madrugada, o canto do galo, alguém sem medo suspira suavemente trago por trago do existir que é demoramento, mas é urgência. Uma névoa branca que de vez em quando condensa, uma vassoura de folha que varre folha, aquilo que faz metáfora no instante em que se olha.
Em Tiros, a subversão do tempo na figura do peão, com sua luzes e sua morte que se cumpre todos os dias, Eros e Tânatos, morte e vida no lombo do indomável e inefável.
Em Tombos, me lembrei de Dante Milano, só que o desejo tinha a cor azul, era azul de infinito, de imensidão, aquele inacessível que voava como um pássaro fazendo festa para o olhar.
Em Planura, me lembrei de tudo que é e faz figura.
Em águas vermelhas, o presente se desfaz olhando para um passado ainda fresco e vigoroso.
Em Dores de Campos, chuva fina, trigo, brisa, vento num baile sinuoso que nos convoca, nos interroga lá onde não enxergamos.
O encontro com o acaso é da ordem de uma radicalidade mais das impressões que das descrições.Tomados pelo acontecimento da fatalidade somos levados em movimentos que se enlaçam e sensações que se colidem.
As cenas possuem a centelha do mistério reportando- se ao não ver, o fugaz das situações nunca se consolida, assemelhando- se a nebulosidade da senhora, com seus esquecimentos do agora.
Em cada uma das vinte cidades poderíamos ver sapatos sendo engraxados, folhas voando ou água correndo. São só pedaços do belo e do sublime, do insidioso, do silencioso, daquilo que está sempre á espreita, mas que é incansável.
Acidentar- se é se deparar com esse impossível, com a construção e desconstrução de uma realidade, apontando mais para a busca que para a descoberta, mais para o trajeto que para o destino, valorizando a causação e aquilo que dela pode criar e interrogar.
O filme me tocou fundo em sua sutileza metafórica, me ensinando que a elaboração estética do defeito pode transformá-lo em virtude e em efeito.
Drummond, meu poeta maior e muito mineiro dizia que para a poesia é preciso coragem, porque ao retirar algo do mundo, também temos que dar algo de nós , que nem sabemos se possuímos. A poesia já está no mundo e, de forma acidental, podemos nos apropriar dela, quem sabe?!
Vinícius de Moraes parecia saber daquilo que Cao Guimarães e Pablo Lobato queriam transmitir:
“ Poesia não é uma coisa que se invente. Ela está aí, imanente, no céu, no ar, no fogo, no mar, nas montanhas, nos homens, nas mulheres, nas crianças, nos animais, nas feras, nas frutas, nas pedras, nas chuvas, na luta pela liberdade, na vida e na morte, em tudo o que existe e pode existir. Os poetas é que não tem peito para assumi- la em suas terríveis exigências.
Não é poesia que falta, mas poetas “